Eu vi Gabriel cruzar Tel Aviv com um rastro flamejante e descer sobre a terra com a fúria de mil deuses vi o sorriso carbonizado das meninas de Rafah e seus dentes arranhando o asfalto derretido vi touros blindados banhando o Jordão com seu sêmen fecundando o sangue de sete mil virgens eu lambi as seis pontas da estrela eu rocei a palma da mão no fio minguante da lua eu assisti à cruz silenciosa no púlpito escarlate esbravejar baixinho eu vi as ruas inflamadas à meia-noite pelas novas lágrimas das últimas carpideiras eu vi um homem-bomba se masturbando diante do muro das lamentações maldizendo a chegada da hora fatídica vi o soldado dizendo amém ao apertar o botão vi o sol deitado nas colinas de Golã por seis dias e seis noites vi um muro que não cessa não cessa que avança sobre a luz da alvorada eu medi meu medo e vi que era bom então o dei de presente para os homens do deserto, para o peixe-ômega que me olha do altar empoeirado, para os deuses pagãos do shopping center, todos os deuses esquecidos, para os herdeiros de Auschwitz, para os desterrados de Gaza, todos os órfãos de Jerusalém eu vi minha dor de existir esparramada no sofá da sala eu me vi tecendo minha mortalha numa manhã ensolarada enquanto o mundo desabava eu me vi rasgando o que há de humano em mim eu temi o que há de humano em mim eu me vi enfim humano eu me vi.
Wellington de Melo
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